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OFFICIUM PARVUM B. MARIAE VIRGINIS (português)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Dante e Mohamed: Castigo de heresia, com prosa seguida por língua moderna Canto XXVIII

CANTO XXVIII

No nono compartimento os Poetas encontram os semeadores de cismas e escândalos civis e religiosas.  Dante vê Maomé, que o encarrega de uma embaixada para o herege rei Dolcino; fala também com outros danados.









DIZER o sangue e as chagas espantosas,
Que eu vi neste lugar, quem poderia,
3 Em livre prosa e em vezes numerosas?

Nenhuma língua, certo, bastaria;
Fraca a palavra, inábil nossa mente
6 Para horror tanto compreender seria.

Quando junta estivesse toda gente,
Que lá da Apúlia na infelice terra,
9 Perdera o sangue seu na luta ingente

Dos romanos por mãos; e em crua guerra
A que tantos de anéis deixou vencida,
12 Como refere Lívio, que não erra;

E a que fora por golpes abatida,
Quando a Roberto Guiscardo resistia;
15 E a que tem sua ossada inda espargida

De Ceperan no campo, onde traía
Cada Apulhês; e que no Tagliacozzo
18 O Velho Alard sem combater vencia:

Das feridas o aspecto lastimoso
Não fora, qual no fosso nono imundo
21 Apresentava o bando criminoso.

Qual tonel, que aduelas perde ao fundo,
Estava um pecador, que roto eu via
24 Das fauces ao lugar que é menos mundo.

As entranhas pendiam-lhe; trazia
Patentes os pulmões e o saco feio,
27 Onde o alimento de feição varia.

A contemplá-lo estava de horror cheio,
Eis me encara e me diz, abrindo o peito:
30 Vê como eu tenho lacerado o seio!

"Mohamed (Maomé) sou, quase pedaços feito;
Antecede-me Ali, que se lamenta:
33 Do mento à testa o rosto lhe é desfeito.

"Todos, que a dor aqui tanto atormenta,
De escândalos, de cismas inventores,
36 Pendidos têm, qual vês, pena cruenta.

"Demônio deixo atrás que os pecadores
Aos fios passa de cruel espada.
39 Da multidão nenhum aos seus furores

"No giro escapa da afrontosa estrada.
Cerrar-se em todo cada golpe horrendo
42 Antes que torne a olhar-lhe a face irada.

"Mas quem és, que, na rocha te detendo,
Estás dessa arte a dilatar a pena,
45 Que Minos te aplicou, teus crimes vendo?"

- "Não é morto; sentença o não condena"-
Torna o Mestre- "não vem por seu castigo,
48 Mas, para ter experiência plena.

"Descendo ao mais profundo vai comigo,
Que morto sou, dos círculos temidos:
51 Tão certo é como falo ora contigo."

Ouvindo mais de cento dos punidos,
De espanto a me encarar se demoraram,
54 Dos seus próprios tormentos esquecidos.

- "A Frei Dolcino diz, pois não findaram
Teus dias e hás de ao sol tornar em breve,
57 Se desejos de ver-me o não tomaram,

"Que se aperceba; pois, cercando-o, a neve
Dará triunfo à gente de Novara,
60 A quem vencê-lo assim há de ser leve."

Para partir um pé Maomé alçara
Ao tempo, em que palavras tais dizia:
63 Baixou-o e foi-se, apenas rematara.

De guela golpeada outro acorria;
Té as celhas nariz tendo truncado,
66 Uma orelha somente possuía.

Como os mais, contemplando-me pasmado,
Aos mais se antecipou e, escancarando
69 O canal, que de sangue era inundado,

"Ó tu"- falou-me- "que não stás penando,
Que outrora hei visto em região latina,
72 Se eu não erro, aparências aceitando,

"Record-te de Pier de Medicina
Se tornar-te for dado ao belo plano,
75 Que de Vercello a Marcabó se inclina.

"E aos dois nobres varões dize de Fano,
Misser Angiolello e Misser Guido,
78 Se o futuro antevendo, eu não me engano,

"Que do baixel, que os haja conduzido,
De Católica ao pé, ao mar lançados
81 Serão por ordem de um tirano infido.

"Por Gregos, por piratas perpetrados,
Entre Chipre e Maiorca ao infame feito
84 Não viiu Netuno crimes igualados.

"O traidor, que de um olho tem defeito,
Dessa terra opressor, que um companheiro
87 Meu tivera em não vê-la mor proveito,

"Irão a seu convite prazenteiro
Para acordo; mas votos de Foscara
90 Não fará por temer vento ponteiro."

"Revela-me" tornei-lhe- "e me declara,
Desse favor, que deprecaste, em troca,
93 Quem de ver essa terra se pesara."

As mãos de um pecador alçando à boca,
Escancarou-a e disse-me gritando:
96 -"É este; a voz, porém, se lhe sufoca.

"Exulado, ele foi quem, dissipando
Hesitações de César, lhe afirmava
99 Que a ocasião perdia demorando."

Oh! quão pávido Cúrio se mostrava
Tendo cortada a língua na garganta,
102 Que outrora tanta audácia aconselhava!

Dos decepados braços alevanta
Outro os cotos ao ar caliginoso:
105 Banha-lhe o sangue a face, que me espanta.

Gritou:- "Memora Mosca desditoso!
Fui quem disse:- O seu fim tem cousa feita!
108 Fatal dito, à Toscana, ai! bem danoso!"

"E à tua raça, que à morte foi sujeita!"
Atalhei. Sobre a dor, dor se acendendo
111 Em desperança se partiu desfeita.

Aquela multidão stava atendendo
Cousa assombrosa eis vejo, que inda hesito
114 Em narrar, provas outras eu não tendo.

Da consciência ja me alenta o grito,
Sócia fiel, que o homen torne forte,
117 Sob o arnês da verdade, sempre invicto.

Eu via, e cuido ver na mesma sorte
Apropinquar-se um corpo sem cabeça
120 Por entre os outros da infeliz coorte,

Caminha, alçando-a pela coma espessa,
Da mão pendente a modo de lanterna:
123 Gemendo, os olhos seus nos endereça.

Servia ele a si próprio de luzerna,
Eram duas em um, era um em duas:
126 Como ser pode, sabe o que governa.

Chegado ao pé da ponte, das mãos suas
Um ao alto a cabeça levantava
129 Para lhe ouvirmos as palavras cruas.

"Vê meu duro castigo!"-assim falava-
"Tu, que os mortos visitas, sendo em vida:
132 Outro já viste igual ao que me agrava?

"Eu sou- faz minha história conhecida,
Voltando à luz-Bertran de Born, que há dado
135 Ao jovem rei consulta, em mal tecida.

"Pai e filho inimigos hei tronado:
As iras de Absalão mais não mobera.
138 Contra Davi Aquitofel malvado.

"Laços tais como eu, pérfido, rompera,
Meu cérebro assim levo desunido
Desse princípio, que no corpo impera:

142 Por lei sou, pois, de talião punido."

Em Língua Moderna: 

Canto XXVIII
Quem poderia, mesmo fazendo uso da melhor prosa,
narrar as cenas de sangue e das feridas, que eu vi naquele
triste lugar? Todas as línguas, por certo, estariam
falidas, pois nossa memória e nosso vocabulário não são suficientes
para compreender tamanha dor. Nem nos campos de batalha das
piores guerras se viu tantos corpos estraçalhados, com deformações
e feridas tão terríveis, quanto os que povoavam aquela nona vala.
Próximo a nós estava um condenado com as entranhas à vista,
rasgado do nariz à garganta e com os intestinos pendurados entre as
pernas. Eu o olhava, hesitante, quando ele, me olhando de volta,
rasgou o peito com as mãos dizendo:
— Vês, tu, como eu me maltrato? Vês como Maomé e Ali estão
desfeitos, gemendo, e todos esses semeadores de discórdias e heresias?
Todos aqui são continuamente rasgados, cruelmente, por um
diabo que aqui nos tortura eternamente. Em vão saram as feridas,
pois logo ele volta e nos dilacera outra vez! — depois me perguntou
— E tu, quem és, tentando retardar a tua pena aí sobre a ponte?
— Nem morte ainda o alcançou, nem culpa ordena que ele sofra
aqui — respondeu Virgílio —, mas para que ele possa ter esta
experiência, eu, que estou morto, devo guiá-lo por todo este Inferno
de giro em giro. Isto é tão verdadeiro como a minha presença

aqui. 
Quando ouviram essas palavras, mais de cem almas se aproximaram
para me ver, quase esquecendo por um momento o seu
intenso sofrimento.
— Diga ao Frei Dolcino — falou Maomé — que ele se abasteça
de mantimentos e não saia do seu refúgio nas montanhas, se
ele não tiver pressa em me encontrar. Se não tomar esses cuidados,
o bispo de Novarra certamente o vencerá!
Depois de falar, Maomé se levantou e saiu. Veio então outro
que tinha a garganta furada, o nariz totalmente decepado e apenas
uma orelha inteira. Ele se separou do grupo e abriu sua goela vermelha,
que falou:
— Ó tu que vi na sua terra latina, lembra-te de Pier de Medicina
quando voltares, e avisa a Guido e Angiolello que, se nossa visão
é certa, eles serão arrancados do seu barco e afogados perto de
Cattólica, por traição de um tirano cruel. Aquele traidor, que só vê
por um olho, reina sobre uma cidade que alguém aqui deseja nunca
ter visto.
— Quem é aquele que nunca deseja ter visto a cidade onde
reina o tirano? — perguntei.
— É este aqui. Mas ele não fala nada! — disse Pier, mostrando
um companheiro calado e assustado, cuja boca ele abriu com a
mão. — Este homem, no exílio, acabou com as dúvidas de César
quando lhe disse: “O homem preparado, quando hesita, perde.”
Oh, como ele parecia assustado, com a língua presa na garganta,
Cúrio, que antes fora tão grande orador.
Um outro, com ambas mãos truncadas, levantou os cotos no

ar, espalhando sangue sobre seu rosto, e gritou: 
— Recorda o pobre Mosca, que disse “o que está feito, está
feito” que para os toscanos foi semente tosca!
— E para a tua casta será a morte! — respondi-lhe, irritado, e
ele, com mais essa ferida, retirou-se.
Continuei a observar a multidão quando vi um corpo que caminhava
sem cabeça. Ele segurava sua cabeça pelos cabelos, balan-
çando-a como lanterna. Quando chegou junto da ponte, ergueu alto
o braço que a segurava, para que sua fala pudéssemos ouvir melhor:
— Sou Bertran de Bórnio — gritou —, e sofro esta pena
monstruosa por ter instigado o jovem rei contra seu pai. Eu pus o
pai contra o filho e por ter separado aqueles antes tão unidos, tive o
meu cérebro separado do meu tronco. E assim, em mim tu vês, o

perfeito contrapasso. 




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