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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Uma Meditação de Quaresma: Queda do Homen.

Dómine, quando véneris júdicáre terram, ubi me abscóndam a vultu irae tuae? Quia peccávi nimis in vita mea. Comíssa mea pavésco, et ante te erubésco: dum véneris judicáre, noli me condemnáre. Quia peccávi nimis in vita mea.- Oficio dos defuntos, rito Dominicano



Quéda do homem. Astucia do demônio. -lmprudencia d'Eva. - Fraqueza de Adão. - Bondade de Deus. - lnterrogação dos culpados. -Sentença contra o demônio. - Misericórdia e justiça para com os nossos primeiros pães. - Penitencia de Adão. - Sua sepultura no monte Calvário.  

Cumulados de honra e gloria, gozavam nossos primeiros pães, em o paraizo terrestre, de tudo aquillo que pôde satisfazer a creaturas racionaes: ao redor d'elles estava o mundo submisso a suas ordens; no porvir uma vida de delicias, e uma eternidade de gozos inefáveis no Ceo; acima d'elles um Pae que os velava e contemplava com amor.

Ah! mas não eram só estas vistas paternaes que se fitavam n'elles. Tambem os olhava Lucifer. Este criminoso Anjo, que acaba a de perder a sua felicidade, resolveu ter companheiros na sua ruína, fazendo a nossos primeiros pães cúmplices da sua revolta. Accommette o cruel estas innocentes creaturas, a fim de perder, em seu tronco, a todo o gênero humano.

Pareceu-lhe a serpente idonea para a sua empreza. Apossou-se do corpo d'este animal, o mais astuto, agil e destro de todos que o Senhor tinha creado sobre a terra. N'esta figura, endereçou-se á mulher, da qual conhecia o gênio fraco, curioso e crédulo. Primeiro a lisongeou com o amor da liberdade, e com ar compassivo disse-lhe: « Porque vos não permittiu Deus que comesseis indifferentemente de todos os fructos d'este jardim? "

Era, em vez de repulsar esta envenenada voz, e nem mesmo a escutar, para testemunhar quanlo era fiel a Deus, respondeu ao seductor:  « Nós temos liberdade para comer do fructo de todas as arvores do Paraizo. Quanto áquella porém, que está no meio do Paraizo, prohibiu-nos o Senhor que não comessemos, nem ainda lhe tocassemos, por mêdo que talvez viessemos a morrer. »



Era uma grande probabilidade de levar a cabo a tentação o começo d'esta prática; tanto é certo que não convém jamais raciocinar com o inimigo da salvação! E tanto á vontade lhe sahiu esta entrada, que o tentador dando mais um passo ousou dizer, como espirita de mentira, contra a palavra formal de Deus, que isto não aconteceria. E levou a tanto o atrevimento que attribuiu a um vil ciume esta prohibição de Deus.

«Sois bem nescios, lhe disse elle, em vos deixar assim intimidar; Deus sabe que no dia que comerdes d'este fructo, vossos olhos se abrirão; e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. »

 D'est'arte, a primeira falta que commetteu nossa mãe, foi entrar em conversação com o tentador; a segunda, empregar os olhos no fructo da arvore prohibida. Em vez de o apartar da vista como uma cousa interdicta, recreou-se em olhar este perigoso objecto. O fructo era bello; parecia que devia ter um gosto exquisito. As promessas do tentador eram lisongeiras. A curiosidade, a vaidade e presumpção, trouxeram o esquecimento de Deus, e dissiparam o temor. A mulher, seduzida, lançou mão do fructo prohibido, e comeu d'elle.

Regosijava-se o tentador, mas parecia-lhe que Adão não cahiria no laço, e teria fineza bastante para se não deixar enganar tão grosseiramente (I ). Por isso não emprehendeu enganal-o, mas enfraquecêl-o. Contava alcançar d'elle victoria, uma vez que podésse tentar sua complacência por valimento de sua esposa. Eva defendeu-se tão mal d'este segundo ataque como do primeiro. Apresentou pois o fructo a Adão, o qual não foi seduzido pelas promessas do demônio, mas por uma condescendência cobarde e mulheril.

Assim comeu do fructo fatal, que o àespojou da sua innocencia, e lhe fez perder em um momento, a elle e seus descendentes, aquelles privilégios com que Deus o honrára para transmittir-lh'o , com o simples encargo de se fazer a si mesmo uma pequena violencia.

Até aquelle momento, Adão e Eva andavam nus como foram creados. Revestidos como estavam do manto da innocencia não e envergonhavam da sua nudez. Despidos d'esta innocencia, seus olhos se abriram, e o conhecimento de seu estado foi o primeiro effeito da sua prevaricação. Taes foram as desgraçadas luzes que lhes trouxe seu crime: a ciencia do bem e do mal, tam alardeada pelo tentador, não se estende a mais. Para se cobrirem, aproveitaram-se como poderam das folhas da figueira; das quaes fizeram cingidouros. Por isso não nos esqueçamos jámais que os nossos vestidos, quer sejam de linho, quer de purpura ou sêda, recordam-nos o peccado e a vergonha de nossos primeiros paes. Que vaidade poderemos tirar d'elles?

Immediatamente ouviram a voz do Senhor, que passeava no jardim, depois do meio dia. Estas palavras significam que o Senhor se apressou em fazer sentir aos culpados a falta que tinham commettido, a fim de os penetrar d'um vivo remorso. Bondade infinita! Depois que nosso primeiros paes transgrediram a lei que lhes havia dado, não cessa o Senhor de se mostrar misericordioso para com elles ; senão que, sempre similhante a si mesmo, lembra-se de que é Pae e Medico. Como Pae, vê seu filho aviltando sua nobreza e renunciando seu alto destino, para se rojar no lodo; e eis que, por sua ternura paternal, acode em soccorro do culpado, testemunhando-le ainda um campassivo interesse para gradualmente o arrancar da sua baixeza, e restabelecêl-o nos direitos que perdê- ra. Como Medico, acode apressurado para junto do doente, que jaz prostrado no leito do sofrimento, quer elle reclame ou não o soccorro de sua arte. Foi assim que Deus tratou o primeiro homem.

Entretanto, ouvindo a voz do Senhor, fugiram os culpados a esconder-se entre a folhagem do jardim: estranho delirio o de julgarem poder occultar-se aos olhos do Todo Poderoso, que em toda parte está presente! Dirieis que eram estes domesticos insolentes, que para fugirem da vista de seu amo irritado, vão esconder, por todos os cantos e recantos da casa, a sua- perturbação e mêdo. Assim Adão e Eva, não achando asilo, correm a esconder-se na casa do mesmo amo que ultrajaram, entre o arvoredo e a folhagem do jardim.

Apezar d' esta precaução, bem depressa os alcançou a soberana Justiça. Eil-os descobertos e em presença do Juiz. Attendamos, e ouçamos com silencio e dôr o interrogatorio dos culpados : são nossos paes que vão ser julgados; escutemos o que respondem os réos e a sentença pronunciada, assim contra elles como contra o perfido instigador do crime. Lembremo-nos primeiramente d'esta ameaça que Deus fizera a nossos primeiros paes: «No dia que comerdes do fructo da arvore do conhecimento do bem e do mal, morrereis.»  A morte do corpo e da alma, tal devia ser a punição dos deliquentes. O que Deus fizera com os Anjos rebeldes estabelecia um precedente terrivel: o genero humano merecia desde logo ser precipitado na morte eterna, e a justiça de Deus parecia interessada em a rigorosa execução da sentença. Que fará este Deus que é ao mesmo tempo Juiz e Pae? Como conciliará as reclamações da sua ternura e os direitos da sua Justiça? Presenciemos este grande processo.

O Senhor Deus chamou Adão, e lhe disse: «Adão, onde estás tu?» Chamava-lhe pelo nome, a fim de o animar. Adão responde: «Eu ouvi a vossa voz no jardim,  e tive mêdo; porque estava nú, e escondi-me.» Tornou o Senhor: «Como sabes que estavas nú, senão porque comeste do fructo prohibido?» Estas primeiras perguntas mostram-nos em toda a luz a inexhaurivel clemencia do juiz. Elle podia não endereçar ao culpado uma só palavra; mas pronunciar logo a sentença de morte, com que o tinha ameaçado. Não o fez porém; antes comprime a sua justa indignação; interroga-o. permitte-lhe que se defenda. Que responderá o accusado? «A mulher que me déstes por companheira, respondeu Adão. offereceu-me do fructo d'esta arvore, e comi.»

Não pôde o réo negar o crime ; mas em vez de se humilhar e recorrer á clemencia do juiz, attribue o seu crime á mulher, que Deus lhe dera. Parece accusar ao mesmo Deus de ser a primeira causa da sua ruina. Similhante desculpa não era admissível. Por isso, nem o Senhor se dignou attender-lhe. Convencido Adão de desobediencia, passa a interrogar o outro culpado. Porque fizeste tu isto ? pergunta elle á mulher ; como se lhe dissera: tu ouves a queixa que teu marido faz contra ti, porque foste o instrumento da tua e sua desgraça?

Eva respondeu : « A serpente me enganou, e comi do fructo.»

D'est'arte se não defende melhor que seu marido. Adão desculpava-se com a mulher, esta com a serpente. Não insiste o Senhor no interrogatorio ; pois o não faz para se instruir a si, que nada lhe é occulto ; mas para dar uma prova de sua clemencia para com os culpados, e proporcionar-lhe occasião de justificar-se, se lhes é possível. Depois d'interrogados nossos primeiros paes, dirige-se ao provocador, não para ouvir sua defesa, nem ainda interrogal-o, mas para lhe pronunciar a sentença. Sem lhe perguntar porque? como fez com Adão e Eva, assim lhe diz logo : « Pois que fizeste isto, tu és maldita entre todos os animaes e bestas dos campos; andarás de rajo sobre o ventre, e comerás terra todos os dias da tua vida. Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendencia e a sua. Esta descendência te esmagará a cabeça; e tu estenderás laços a seus pés. »



Estamos impacientes por saber como foi punida a serpente e não o demonio; o instrumento e não o author do crime? Aqui verêmos ainda uma prova do terno amor com que Deus nos ama. Um pae a quem o ferro do assassino roubou seu filho, objecto de sua ternura, começa por descarregar sua ira sobre o ferro homicida, quebrando-o e fazendo-o em pedaços. Assim também obrou Deus, castiga a serpente de que o demônio se servira em sua criminosa obra, infligindo-lhe uma pena perpetua; para nos dar a entender, com esta imagem sensível, quanto o demônio lhe é odioso; e pois que se enfureceu com tanto rigor, contra o que foi um instrumento, julgai que tratamento recebe o mesmo author do crime. Ora, como a maldição pronunciada contra o demônio, encarcerado longe de nós, em os infernos,- não se mostrava a nossos olhos por algum effeito visível, quiz Deus por este modo fazer-no-lo sentir pela punição da serpente, condemnada a rojar-se, e comer o pó da terra em todos os dias da sua vida.

Pronunciada a sentença do demonio, voltou-se o juiz para nossos primeiros paes. Mas, ó infinita misericordia ! ainda antes de lhes intimar a sentença, na mesma condemnação do tentador, fazia brilhar a seus olhos raios de viva esperança.

A principio, dizendo que poria inimizades entre a descendência da mulher e a descendência da serpente, dava-lhes a entender que não soffreriam a morte no mesmo dia do peccado, como elles deviam esperar. Se são condemnados, terão ainda tempo para se preparar e tornar a morte meritória. Depois accrescentando que a descendência da mulher esmagaria a cabeça da serpente, significava-lhes que os males de que eram victimas seriam reparados.

Com estas duas asserções, deviam esperar nossos primeiros pães, sem inquietação, a sentença d'um juiz que se mostrava tam clemente. Sua misericordia, em verdade, tinha vencido; mas era preciso dar alguma cousa á sua justiça.

O Senhor se voltou pois para a mulher ; menos culpada sim que o demônio, mas d' alguma sorte mais culpada que o homem, e lhe disse: « Multiplicarei as tribulações, e os teus partos; darás ao mundo teus filhos com agudas dôres. Serás sujeita ao homem, que exercera sobre ti o seu domínio. » Notai a clemencia divina mesmo no rigor do castigo. Os trabalhos do parto serão compensados bem depressa por consolações que os farão esquecer ; e a mulher, por sua terna e paciente resignação, recuperará uma parte da sua dignidade, e suavisará a dominação do homem. Restava ainda o pae do gênero humano, rei do mundo visível e bem amado do seu Deus. O Senhor lhe endereça a palavra e lhe diz: «Pois que preferiste às minhas ordens os conselhos de tua mulher, e assim comeste do fructo prohibido, a terra, que até aqui produzia de si mesma tudo o que precisavas, d'ora em diante será ingrata e maldita. Todos os dias de tua vida exigirá de ti uma trabalhosa cultura, para te produzir parcamente o pão que lhe tiveres confiado com o suor do rosto; cobrir-se-ha d'espinhos e abrolhos, e por entre seus pungentes estrepes haverás de colher as hervas, que serão parte do teu sustento. Tal será tua condição até o momento em que cansado de trabalhos e sujeito á morte, tornarás á terra d'onde sahiste; pois que tu és pó, e volverás ao pó'. »

Esta terrivel sentença fere o culpado em todo o seu ser; seu entendimento obscurecido, sua vontade inclinada ao mal; seu corpo flagellado de dôres, eis d'ora'vante o que attestará assim a grandeza de seu crime, como a severidade de Deus que o pune. Adão porém devia dar-se por muito feliz em ficar quite por tam pouco. Em meio d'estes males fica-lhe o maior do bens, a esperança; isto é, o tempo e a possibilidade de reparar sua desgraça. Nisto foi tratado bem melhor que os Anjos rebeldes ; com quanto ameaçado do mesmo castigo, pôde ainda reconquistar o Céu, o que não poderão jamais aquelles. Ora, que são as perdas todas, uma vez conservada a possibilidade d'alcançar o Céu?

O Senhor Deus, que soffre no coração paternal os mesmos golpes que sua insubornável justiça descarrega nos reos, se deu pressa em patentear a nossos primeiros pães um precioso signal de sua bondade ; pois nas mais pequenas cousas se mostra a ternura mais tocante. Para lhes poupar a vergonha de sua nudez, procurou-lhes elle mesmo pelles de feras de que lhes fez vestidos.

 Esta dolorosa scena do primeiro juizo de Deus teve por theatro o mesmo jardim onde se perpetrou o crime. A fim de mitigar a amargura de sua desgraça, veio ainda o Senhor consolar estas duas creaturas. A este tempo recebeu a primeira mulher de seu marido o nome d'Eva ou mãe de todos os viventes; nome inspirado que, realçando a dignidade da mulher, prophetisava a Santíssima Virgem, e reanimava a esperança no coração dos culpados. Restava agora executar a sentença. O Senhor disse, e nossos paes, sahiram tristes do Paraíso terrestre, para nunca mais entrarem n'elle. Um Cherubim, armado de fulminante gladio, se colloca na entrada, para defendêl-a ao primeiro homem e a todos os seus descendentes.

 Exilado d'este lugar de delicias, e reduzido á necessidade de cultivar a terra, Adão passou a chorar seu peccado e fazer penitencia a larga vida de novecentos e trinta annos. Foi tam humilde esta sua penitencia, tam constante e submissa, que em vista do mérito e pela graça do Libertador que lhe fôra promettido, recuperou a amizade de seu Deus, e morreu em seu amor. O pae do genero humano foi enterrado no monte Calvario. Quatro mil annos depois, a Cruz de Jesu-Christo foi plantada sobre a mesma sepultura d'Adão. Assim convinha que as primícias da nossa vida se collocassem onde o havia sido a origem da nossa morte.

 Vêde se não é admirável a relação que ha entre este lugar e a cruz de Jesu-Christo? Era muito justo que nosso Senhor, vindo resgatar o primeiro Adão, escolhesse para soffrer o lugar onde elle foi inhumado; e expiando seu peccado, assim também expiasse o de seus descendentes. Dissera Deus a Adão : tu és terra e tornarás á terra,  e é por isto mesmo que Jesn-Christo veio procurai-o no lugar onde fora executada a sentença; a fim de o livrar da maldição; e em vez d'aquellas palavras tu és da terra e tornarás á terra, dizer-lhe : levanta-te, tu que dormes sahe do tumulo.  D'est'arte, o nome de Calvário que significa chefe, une em a mesma prophecia o sepulchro d'Adão ao tumulo de Jesu-Christo ; e todos os sacrifícios e mistérios da Lei antiga aos da Lei nova. Eis-aqui uma das bellas harmonias com que deparamos a cada passo na ordem da graça como da natureza, e que denunciam uma sabedoria á qual nada escapa.



(1) Cum homo in primo statu secundum intellctum sic a Deo fuerit institu·
tus, quod nullum malnm in ipso incrat, et omnia inferiora superioribus subdebautur
nnllo modo decipi potuit, nec quoad ea quae scivit, nec quoad ea quae neseivit.
S. Tb. p. 1, <I· 94, aat. IV. 


retirado do Catecismo da Perseverança XVIa Lição por Mons. Jean-Joseph Gaume.



Um comentário:

  1. What year and what Bishop ordained Fr.Suelo? (The priest from Philippines who recently died?)

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